Anos 1920, interior segregado e racista do Mississippi.
Cansado de tentar tocar como os músicos que faziam sucesso nas quebradas do Sul dos EUA, um rapaz negro decide dar a cartada final para se tornar o melhor violonista já visto nos juke joints (os butecos) daquelas bandas.
Seguindo os conselhos de Willie Brown, parceiro do lendário bluesman Son House, o jovem leva o violão até uma encruzilhada (veja-a no Google Maps) da cidadezinha de Clarksdale.
Ele aguarda até meia noite, e…
O que aconteceu – se é que aconteceu – é um mistério que nunca será explicado e se encontra enterrado junto aos restos mortais do tal rapaz – Robert Leroy Johnson. Na famigerada encruzilhada, Johnson teria feito um pacto com o coisa ruim. “Leve seu violão à encruzilhada que o diabo irá afiná-lo”, disse-lhe Willie Brown. Ele transforma-se, então, no melhor violonista do Delta do Mississippi.
Essa narrativa faustiana transformou Johnson na maior lenda do blues. Sua voz singular e sua técnica inovadora foram influência de todos artistas influenciados pelo gênero, de Keith Richards a Jack White.
O mito em torno dessa história nunca deixou de crescer. Pelo contrário: 81 anos após a morte de Johnson – supostamente causada por envenenamento -, o folclore que ronda a sua biografia continua a intrigar legiões de fãs e historiadores.
Agora, parte do mistério é desvendado no excelente “O Diabo na Encruzilhada” (“Devil at Crossroads”, 2019), documentário que integra os episódios da série Remastered, da Netflix, dedicada a abordar fatos marcantes da música do Século XX.
Concisa e abrangente, a produção já pode ser incluída no rol dos filmes que todo guitarrista precisa assistir. Pode-se afirmar que “O Diabo na Encruzilhada” pode despertar o interesse pela história do blues assim como o longa “A Encruzilhada” fez nos anos 1980. Leia mais neste post.
A exemplo do filme estrelado por Ralph Macchio, o documentário certamente apresentará a lenda de Robert Johnson para a geração com streaming à disposição.
Claro que vários fatos e curiosidades que engrandecem o mito ficaram de fora. Afinal, os episódios de Remastered possuem pouco mais de 40 minutos. Mas mesmo assim, trata-se de um documentário fundamental para entender o contexto histórico da biografia de Johnson. Confira cinco motivos pra não deixar de assisti-lo:
1) Johnson mandava mal no violão
Pois é, o maior bluesman da história era considerado medíocre por quem o viu tocar antes do período misterioso em que ele se ausentou por cerca de um ano – período no qual ele teria feito o famoso pacto com o demo.
Durante esse tempo, ninguém teve notícia do cara. E então ele retorna um compositor completo, com um arsenal inédito de técnicas e cantando daquele jeito, hã, sobrenatural.
2) Robert Johnson alimentava a história do pacto
Talvez o acordo com o tinhoso tenha rendido, de bônus, uma capacidade marketeira para o jovem bluesman aproveitar os rumores em causa própria.
Ao invés de negar que tenha vendido a alma, ele corroborava e incentivava os boatos.
Afinal, não existe má publicidade, certo?
3) O documentário revela a provável causa do virtuosismo do bluesman
Durante o período misterioso em que Johnson retorna tocando feito o diabo (ops), ele supostamente teve um mentor que lhe ensinou a técnica mágica para tocar o blues do Delta do Mississippi.
Contar mais seria estragar uma das principais surpresas do filme.
4) Johnson inaugurou o Clube dos 27
A trágica tradição da morte aos 27 anos de idade que acometeu outros ícones da música, como Brian Jones, Kurt Cobain e Amy Winehouse, teve início em 1938, quando Johnson caiu morto nos cafundós da cidadezinha de Greenwood, no Mississippi.
5) Ele estava prestes a se tornar conhecido nacionalmente
Em outro ponto alto do filme, ficamos sabendo que Robert Johnson quase se apresentou no palco do Carnegie Hall, famosa casa de espetáculos de Nova Iorque.
Em uma cena emocionante, o documentário revela a acolhida do público novaiorquino à música do lendário bluesman.
Para saber mais
Após conferir “O Diabo na Encruzilhada”, provavelmente você ficará instigado a pesquisar mais sobre a vida de Johnson.
E acredite: ao pesquisar certas palavras-chave no Google, você perceberá que o documentário da Netflix é apenas a ponta do iceberg dentro do universo de obras dedicadas a desvendar a vida do mito.
Nos últimos 10 anos, por exemplo, Johnson foi pauta de reportagens extensas quando uma suposta terceira foto (veja abaixo) do bluesman foi descoberta acidentalmente.
Até então, apenas duas fotografias do homem eram reconhecidamente autênticas.
O resumo da história pode ser lido nessa matéria do NY Times.
E o músico Zeke Schein – a pessoa que descobriu a foto – escreveu um livro contando a saga para autentica-la. Infelizmente, a obra ainda não foi traduzida para português, mas pode ser adquirida na Amazon.
Outro livro interessante é “O Diabo e Eu“, em que o quadrinista brasileiro Alcimar Frazão ilustra a história de Johnson com um detalhe que deixa a obra poética e onírica: sem nenhum diálogo.
Ou seja, a narrativa é estritamente gráfica. Parte das ilustrações dessa matéria, aliás, foram tiradas do livro. Veja mais detalhes aqui.
Também vale a pena conferir “The Search for Robert Johnson”, valioso documentário de 1991 em que o músico John Paul Hammond viaja até o Delta para investigar a vida do bluesman e conversar com familiares, músicos e pessoas que o conheceram. Inclusive, vários trechos das entrevistas contidas neste documentário foram reproduzidos no filme da Netflix.
Hammond é filho de John Henry Hammond II, lendário produtor de shows que havia tentando agendar a participação de Robert Johnson no festival From Spirituals to Swing.
Nos anos 1960, Hammond pai também foi responsável por relançar as gravações do Johnson e permitir que as novas gerações – como a da British Invasion – descobrissem a sua obra.
Pra finalizar, um depoimento exclusivo de um dos principais nomes do blues brasileiro, Mr. André Christovam, a respeito do artista.
“Robert Johnson: não se analisa a sua obra. Até pode, mas não se deveria.
Tem de absorver a idiossincrasia de seu estilo, entender o seu texto e perceber que a sua guitarra é a voz feminina que conversa com ele canção após canção.
Sua musica traduz uma realidade exuberante. Ele executa suas musicas num único tom, o tom da verdade! Fossemos fazer um estudo filosófico de sua passagem por esse mundo, deduziríamos que Robert Johnson é o arquétipo do blues.
O homem que virou mito ao traduzir sua visão de um inferno íntimo que o assolava por ser negro, órfão e pobre. Ainda assim, se fez eterno através de sua arte!”
Demais, né? Compartilhe a matéria com os seus amigos e amigas fãs de blues 🙂
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